Lembra-se da famosa campanha antipirataria "Não Roubarias um Carro"? Lançada pela Motion Picture Association of America (MPAA) em meados dos anos 2000, a sua mensagem era clara: piratear um filme é como roubar um bem físico. Contudo, surge agora uma questão irónica: terá a própria MPAA desrespeitado os direitos de propriedade intelectual ao criar a campanha, utilizando uma fonte sem a devida licença?
A resposta, como frequentemente acontece em assuntos relacionados com tipos de letra, fontes e direitos de autor, é algo complexa.
A descoberta e a potencial hipocrisia
A campanha, que esteve ativa entre 2004 e 2008 em cinemas e suportes físicos, era bastante direta. Um dos anúncios mostrava uma adolescente a clicar num botão de download num site duvidoso, sendo imediatamente confrontada com a frase "Não roubarias um carro" em letras brancas sobre fundo preto, com um estilo que simulava tinta de spray aplicada com stencil.
O site Fonts in Use identificou a fonte como sendo a FF Confidential, desenhada por Just van Rossum em 1992. Melissa Lewis, jornalista no Center for Investigative Reporting, notou esta identificação e recordou investigações anteriores sobre uma fonte muito semelhante, a Xband Rough. Ao contactar van Rossum, este confirmou que a Xband Rough era, de facto, um clone da sua FF Confidential.
Posteriormente, uma análise mais aprofundada por um utilizador conhecido como "Rib" a um ficheiro PDF arquivado do site da campanha revelou, através da ferramenta FontForge, que a fonte utilizada no documento era precisamente a Xband Rough.
Just van Rossum – irmão de Guido van Rossum, o criador da linguagem de programação Python – admitiu ao TorrentFreak que sabia da existência do clone Xband Rough e que a sua fonte original tinha sido usada na campanha antipirataria. No entanto, desconhecia que a MPAA tivesse recorrido à versão clonada, um facto que considerou "hilariante". Contactado para comentar, van Rossum preferiu não fazer declarações adicionais.
Não é claro até que ponto o uso da Xband Rough foi generalizado na campanha. Poderá ter sido um caso isolado, utilizado apenas em materiais suplementares como o PDF analisado? Sem acesso aos ficheiros originais da campanha, é difícil determinar a extensão do uso de fontes com origens duvidosas.
Direitos de autor: Fontes vs. Tipos de Letra
É importante distinguir entre um tipo de letra (o design ou estilo das letras, como Helvetica) e uma fonte (a aplicação específica desse design, como um ficheiro de software que permite usar Helvetica Rounded Bold 14pt no computador).
Nos Estados Unidos, o design de um tipo de letra em si geralmente não está sujeito a direitos de autor, conforme decidido no caso Eltra Corp. v. Ringer de 1978. Considera-se que falta a originalidade necessária, dada a semelhança entre muitos tipos de letra. No entanto, o ficheiro da fonte, enquanto software, pode ser protegido por direitos de autor.
A FF Confidential foi publicada pela fundição de tipos FontFont em 1992, posteriormente adquirida pela Monotype Imaging em 2014. Atualmente, a FF Confidential possui marca registada nos EUA e potencialmente noutras jurisdições.
No Reino Unido e na Alemanha, onde a campanha também foi exibida, a proteção legal para tipos de letra é diferente e potencialmente mais abrangente, embora com limites temporais (geralmente 25 anos).
Advogados de propriedade intelectual referem que, embora o uso comercial de fontes que são cópias exatas de outras protegidas seja relativamente comum, raramente leva a litígios, em parte devido à dificuldade em provar a originalidade do design e aos custos legais associados.
A origem misteriosa da Xband Rough
De onde surgiu a Xband Rough? O nome sugere uma ligação à antiga rede de jogos online XBAND, ativa entre 1994 e 1997, que utilizava um estilo gráfico semelhante em algumas das suas embalagens. Especula-se que a XBAND possa ter licenciado a FF Confidential, renomeando-a internamente como "Xband Rough". Uma cópia com este nome poderia ter sido extraída de materiais da XBAND e disseminada na internet sem a devida atribuição. Contudo, a sua origem exata permanece incerta.
Contactada para comentar, a Motion Picture Association (agora apenas MPA) recusou-se a fazer declarações sobre o assunto.
A campanha "Não Roubarias um Carro" foi criticada na altura pela sua simplificação excessiva da questão da pirataria. Esta investigação sobre a fonte Xband Rough vem, ironicamente, reforçar a ideia de que as leis de propriedade intelectual são, de facto, bastante mais complexas do que o simples ato de "roubar um carro".
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