Quando se fala de software licenciado, na maioria das vezes a ideia que surge será de aplicações como o Windows, Office e outros programas variados, onde os consumidores necessitam de adquirir uma licença para utilizarem o produto de forma legal.
No passado, uma licença de software era algo simples de se verificar a legalidade. Bastava comparar a licença com a data de compra, ou os documentos de aquisição, para identificar se era ilegal ou não. Em alguns casos, ferramentas e modificações podiam também ser usados para esse fim, mas novamente, era relativamente simples de identificar a pirataria realizada.
Porém, a linha entre o legal e ilegal é consideravelmente mais fina nos tempos que correm, ao ponto que muitas tarefas consideradas como “banais” são na realidade um género de atividade ilícita – por vezes sem que os consumidores o saibam.
No caso das licenças, estas possuem custos inerentes, que em algumas situações podem ser consideravelmente avultados. Portanto, quando existe uma plataforma que promete reduzir 10 ou 20 vezes o preço dessas mesmas licenças, e se apelida como sendo totalmente legal, deveremos confiar?
Ao longo dos últimos anos, uma tendência que tem vindo a verificar-se pela internet encontra-se relacionada com o licenciamento do Windows, Office e vários outros produtos. Nos dias que correm é fácil encontrar-se sites e lojas online a venderem licenças destes programas a custos consideravelmente mais reduzidos que o “tradicional”.
No exemplo de uma licença do Windows 10 Home, adquirida diretamente da Microsoft, o custo da mesma pode atingir os 145 euros por computador. Este valor pode chegar mesmo aos 259 euros para o caso do Windows 10 Pro, ou 439 euros para o Windows 10 Pro for Workstations.
Existem variações dependendo do género de consumidor, mas na maioria dos casos, quem esteja a montar um novo sistema necessita de pagar este valor para adquirir uma licença do Windows e poder usar a mesma legalmente.
É aqui que as plataformas de revenda de licenças entram, ao cativar com valores consideravelmente mais atrativos. Existem várias plataformas no mercado que prometem licenças para o mais variado género de software, com custos que podem chegar a ser 20 vezes inferior ao valor tradicional das licenças adquiridas pelos meios oficiais.
Mantendo o exemplo da licença do Windows, nestas plataformas é possível adquirir uma licença do Windows 10 Pro com preços a rondar os 15 ou 20 euros. Como se pode perceber, isto vai certamente chamar a atenção de quem procure poupar no final.
E para o consumidor, a licença até pode realmente ser ativada. Mas isso torna-a legal? Não propriamente…
> A origem do “gray market”
A questão que se coloca é simples: como conseguem estas entidades colocar licenças do Windows, Office ou qualquer outro programa a custos consideravelmente inferiores do que os praticados pelos meios legais?
O TugaTech contactou a ASSOFT, Associação Portuguesa de Software, relativamente a este caso, e de forma a obtermos uma informação detalhada sobre a legalidade do que é conhecido como “gray market”, ou mercado cinza, da venda de licenças.
A principal missão da ASSOFT é a defesa dos interesses de quem desenvolve software, produzindo inovação e propriedade intelectual, em Portugal. O combate a atividades ilícitas é igualmente um dos pontos visados nesta missão.
Para a ASSOFT, o simples facto de uma licença encontrar-se a ser revendida por um preço abaixo do praticado pelos canais oficiais significa que alguém comprou essas mesmas licenças, de alguma forma, e potencialmente se encontra a fornece-las com uma perda considerável de dinheiro no processo. Alguém sim, mas não propriamente o vendedor das mesmas, até porque, segundo a associação, “isso já de si implicaria uma prática de dumping punível por lei.”
A legislação portuguesa impede que um produto seja vendido a custo inferior ao de compra, o que poderia ser o aplicável para este caso, no que é considerado como dumping de preços.
A associação sublinha ainda que “estes canais encontram-se debaixo da mira das autoridades em todo o mundo, pois sabe-se hoje que constituem um veículo de fraude e de arrecadação de fundos que têm por base casos de fraude, roubo (cartão de crédito, phishing, ransomware), extorsão e branqueamento de capitais.”
Ou seja, as plataformas que fornecem este género de licenças encontram-se a faze-lo de forma ilegal, sendo que as autoridades suspeitam da existência de redes criminosas que usam os fundos obtidos de forma ilícita para adquirir todo o tipo de produtos digitais, tais como colecionáveis, jogos, software, cartões-presente, etc, os quais são depois revendidos sobre estas plataformas a custos consideravelmente reduzidos.
Esta origem pode ser bastante diversificada, mas na maioria dos casos a sua legalidade é praticamente nula. Como exemplo, estas licenças podem ser adquiridas:
- Roubo de licenças OEM, normalmente fornecidas para fabricantes de computadores e não para revenda ao público.
- Roubo de licenças adquiridas em grandes quantidades, normalmente por empresas para uso em vários sistemas
- Roubo de licenças fornecidas por patrocínios ou giveaways, que normalmente são oferecidas apenas para “teste”
Em casos mais graves, as licenças podem ser adquiridas através do uso de cartões de crédito roubados/clonados, contas de plataformas de pagamento hackeadas, licenças roubadas, entre outras.
Ou seja, em resumo, a origem destas licenças poderá ser consideravelmente questionável, e com grandes lucros para quem as venda, mas ao mesmo tempo grandes e avultadas perdas para quem é a vítima.
Para os criminosos, vender uma licença por 10 euros quando esta custa 200 euros, não terá grande impacto de qualquer forma, pois no final é puro lucro se a origem da mesma é de fontes “ilegais” ou criminosas.
A piorar a situação, a lei estabelece que é considerado um ato ilícito adquirir produtos, serviços ou bens com fundos igualmente obtidos de forma ilícita. Para os consumidores finais que adquirem esta licença, estes podem pensar que se trata de uma cópia genuína, já que realmente a licença pode até funcionar na normalidade em primeiro lugar, mas isso não torna o processo legitimo – além de que estará igualmente a ser um meio de incentivar a continuidade desta prática.
Qualquer plataforma que venda ou promova a venda de produtos neste género de “gray market” encontra-se indiretamente a patrocinar atividades ilegais realizadas pelos vendedores dessas licenças. Pode não ser a plataforma que fornece acesso às licenças, mas sim aos vendedores que nelas colocam as licenças. Ou seja, o consumidor, ao adquirir uma licença, está a incentivar atividades ilícitas no final.
> Mas a licença funciona…
Este é um dos pontos muitas vezes indicados na aquisição destas licenças. Se a licença é adquirida a um custo reduzido, mas funciona e é ativada na normalidade, então isso coloca a mesma como legal, certo? Não propriamente…
O simples facto de uma licença ser ativada com sucesso, e funcionar, não quer dizer que a mesma seja considerada legal – sobretudo se tivermos em conta os pontos referidos anteriormente.
O software pode surgir como ativado e funcionar completamente como esperado, surgindo a indicação que está ativo “legalmente”. No entanto, é importante ter em conta os Termos de uso dessa licença – e certamente que uma vasta maioria dos software não autoriza que licenças adquiridas de forma ilícita possam ser consideradas como “legais”.
O Windows, por exemplo, pode surgir como ativado. Mas se a licença para tal foi adquirida por um cartão de crédito roubado, isso não a torna “legal” no final. Aos olhos da Microsoft e do que esta sabe, pode ser considerada uma licença legitima, mas, como vimos anteriormente, aquisição de bens e serviços com fundos ilícitos é considerado um crime – o que coloca automaticamente a licença como “ilegal”.
Além disso, é importante ter em conta que este género de licenças pode, a qualquer momento, ser revogado pela entidade criadora da mesma. No exemplo do Windows, a Microsoft pode a qualquer momento bloquear uma chave de ativação que tenha sido obtida de forma ilícita – e todos os que tenham adquirido a mesma deixarão de a poder usar.
Este não é um caso novo, sendo que, no passado, já houve milhares de licenças e até mesmo consolas a serem bloqueadas por terem sido adquiridas com fundos ilícitos.
> Como comprovamos as atividades ilícitas?
Existem vários métodos de identificar este género de atividades ilícitas na venda das licenças sobre as plataformas de “gray market”.
Para comprovar exatamente esse ponto, o TugaTech procedeu com uma investigação mais aprofundada na mesma. Começamos por obter acesso a uma chave de ativação do Windows 10 Pro, a qual foi adquirida por uma destas plataformas de “gray market”.
A chave foi ativada com sucesso no Windows, o qual surge como estando ativado com uma chave de licença válida. No entanto, para validar o género de chave que é, necessitamos de usar uma pequena funcionalidade disponível pelo próprio sistema.
O “slmgr” é um comando que pode ser acionado a partir da linha de comandos, e encontra-se disponível em todas as versões do Windows, do qual permite realizar várias tarefas realizadas com o licenciamento do sistema operativo. Neste caso, o importante será o comando “slmgr -dli”, que permite verificar os detalhes sobre a licença.
Ao usar o comando, podemos verificar que a suposta chave “legitima” do Windows é na verdade considerada como uma chave “VOLUME_MAK”.
Existem diferentes géneros de chaves do Windows, sendo que uma chave vendida oficialmente pela Microsoft deverá ser considerada como RETAIL. Chaves do género “VL” consistem em chaves adquiridas em “Volume license”, normalmente associadas com empresas que compram centenas de licenças ao mesmo tempo para os seus sistemas internos – e estas chaves não se destinam a ser revendidas, o que viola os termos da Microsoft.
Existem ainda chaves “MAK”, que são chaves permitidas para ativação em vários sistemas ao mesmo tempo – onde normalmente uma chave apenas pode ser ativada uma vez, estas podem ser ativadas em mais do que um computador. Novamente, estas chaves não podem ser vendidas ao público em geral.
Outro estilo de chaves serão as “OEM”, normalmente usadas apenas por fabricantes de sistemas – e que não são vendidas em retalho para o público.
Uma chave “VOLUME_MAK” consiste numa que terá sido adquirida em volume (provavelmente por uma empresa) e que pode ser ativada em diferentes sistemas.
O problema? Para começar, esta chave não é vulgarmente adquirida junto do público e não é permitida para revenda pela Microsoft. Logo aqui a chave seria considerada como “ilegal”. Além disso, a qualquer momento a Microsoft pode revogar a validação desta chave, tornando a mesma inutilizada e ficando todos os sistemas que a usam em estado “não licenciado”.
Como verificado, este género de chave não deveria ser comercializado para o público, no entanto é o que se encontra a ser fornecido – juntamente com todas as restantes variações – como sendo uma chave “legitima” nestas plataformas.
> As empresas não agem contra estas vendas…
Outro ponto muitas vezes referido encontra-se no facto que empresas como a Microsoft ou qualquer outra que tenha este género de licenças “secundárias” à venda não aplicam medidas contra essas licenças.
É importante relembrar que detetar o uso deste género de licenças ilegais não é um procedimento simples ou fácil de ser feito – e com milhares de licenças ativadas por dia, uma empresa não possui a capacidade simples de monitorizar onde cada uma foi realmente ativada.
Por norma, estas empresas vão atrás de quem vende diretamente as licenças (os vendedores), e não de quem as tenha adquirido. É mais simples bloquear a licença para esses casos.
No entanto, para essas empresas, é impossível ou complicado de identificar esse género de licenças logo à partida, dai que uma licença pode ser usada durante anos sem qualquer problema, enquanto outras podem ser bloqueadas logo na semana seguinte à compra.
No final, isso não quer dizer que as empresas não se importem com o uso destas licenças, e continua a manter-se todos os pontos anteriores sobre a legalidade e incentivo a práticas ilícitas.
> Os afiliados e promoções por criadores de conteúdos
As plataformas que fornecem este género de licenças possuem, na sua grande maioria, um sistema de afiliação. Este é um método bastante usado por diversos portais online, criadores de conteúdos e afins para poderem obter um rendimento extra sobre cada licença que seja vendida para o seu público.
O TugaTech, no passado, foi exatamente um desses afiliados, que antes de termos realizado a presente investigação, promovemos igualmente a compra sobre algumas destas plataformas (e poderá ver mais informações nesse sentido na secção final deste artigo).
No entanto, este sistema de afiliação cria igualmente um movimento errado sobre a ideia do licenciamento, fazendo passar o mesmo como legal quando – como verificado anteriormente – não é o que acontece.
Ao promover plataformas que estejam a vender licenças do Windows, Office, Steam e outros softwares, a custos consideravelmente mais reduzidos que os oficiais, essas entidades estão diretamente a promover a continuação de atividades ilícitas por parte dos vendedores. Cada licença adquirida será um ganho para os vendedores que as obtiveram pelos meios “ilegais”.
Para os afiliados, estes podem alegar não ter qualquer relação com as entidades que vendem as respetivas licenças – no entanto os mesmos encontram-se a obter lucros de cada vez que um visitante ou utilizador adquire uma licença pelos mesmos nessas plataformas online. E isto cria um incentivo para manter a promoção deste género de conteúdos – mesmo que essas plataformas tenham bastante renome e conhecimento das práticas “cinzentas” que são praticadas.
> Para os consumidores…
Se está a pensar adquirir uma licença para software, o recomendado será que o realize através dos meios oficiais para o efeito. Desta forma estará a garantir que a licença que se encontra a adquirir é oficial – além de que vai garantir também o suporte da mesma para o futuro.
Além disso, não estará a incentivar o mercado paralelo e a continuação de atividades criminosas, além de que estará também a evitar problemas mais graves no futuro, como o cancelamento das licenças ou até mesmo possíveis processos legais.
> Uma nota final
Para transparência, o TugaTech foi uma das plataformas que, no passado, realizou publicações relacionada com marketplaces e sites online que vendem este género de licenças – algo que é bastante vulgar de se encontrar em muitos websites, criadores de conteúdos e portais na Internet. A promoção destes locais foi realizada antes da investigação feita e do apoio junto da ASSOFT para validar a legalidade das mesmas.
Face aos resultados da investigação, iremos deixar de promover qualquer género de conteúdos relacionados com sites de licenças que não sejam oficiais das entidades (tanto na publicação de notícias como sobre o nosso fórum). No mesmo sentido, apelamos a qualquer criador de conteúdo ou afiliado para que tenham em consideração os resultados da investigação, e do impacto que a promoção de tais plataformas possui sobre as atividades ilegais – das quais estão a ser diretamente promovidas com cada artigo ou vídeo criado.
Cada vez que um artigo ou vídeo é colocado a patrocinar estes sites de “mercado cinza”, estará a promover a atividade ilegal/ilícita e a prejudicar os criadores do software.
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