
A visão utópica de Sam Altman para uma identidade digital universal, baseada na leitura da íris, está a enfrentar um duro choque com a realidade. Entre bloqueios governamentais, incluindo em Portugal, e uma adesão muito abaixo do esperado, a Worldcoin luta para justificar a sua avaliação multimilionária.
A grande distância entre a ambição e os números
Quando Sam Altman, também conhecido por liderar a OpenAI, cofundou a Worldcoin, o objetivo era claro e monumental: criar uma rede financeira e de identidade global que abrangesse mil milhões de pessoas. A premissa envolvia a utilização de um dispositivo futurista, o "Orb", para digitalizar a íris dos utilizadores, garantindo que cada identidade digital fosse única e humana.
Contudo, desde o seu lançamento público em 2023, o projeto conseguiu captar apenas 17,5 milhões de registos. Embora possa parecer um número considerável para uma startup comum, representa menos de 2% da meta ambiciosa estabelecida pelos fundadores. A recompensa para quem aceita olhar para a esfera metálica é o acesso a uma aplicação de serviços e tokens da criptomoeda do projeto, que atualmente valem cerca de 60 cêntimos por unidade.
Um antigo funcionário resumiu o paradoxo da empresa numa declaração à Business Insider: "Está a criar a doença, mas também quer criar a cura", referindo-se à ironia de tentar resolver problemas de identidade digital que a própria proliferação da Inteligência Artificial (área onde Altman é pioneiro) ajuda a exacerbar.
O bloqueio global e a complexidade corporativa
A expansão da Worldcoin tem sido travada por uma "muralha" regulatória em vários pontos do globo. A lista de países que impuseram travões à atividade da empresa é extensa e inclui Portugal, onde a CNPD suspendeu a recolha de dados biométricos. Espanha, Alemanha, Hong Kong, Indonésia e Brasil seguiram caminhos semelhantes, com o Quénia a banir a atividade apenas um mês após o arranque.
As preocupações são transversais:
Alemanha: As autoridades consideraram as medidas de proteção de dados insuficientes contra ciberataques.
Ásia: As Filipinas, Tailândia e China levantaram questões que vão desde a operação de negócios de ativos digitais sem licença até ameaças à segurança nacional.
Para complicar o cenário, a estrutura da empresa é um labirinto corporativo. A tecnologia vem da "Tools for Humanity" (EUA e Alemanha), mas o controlo do projeto pertence à "World Foundation" (Ilhas Caimão), e a distribuição dos tokens é gerida pela "World Assets Limited" (Ilhas Virgens Britânicas).
Apesar deste cenário adverso, a capacidade de atração de capital mantém-se forte, com a empresa a angariar 240 milhões de dólares (aprox. 227 milhões de euros) de investidores de topo, alcançando uma avaliação de 2,5 mil milhões de dólares.
Estratégias agressivas em mercados emergentes
A investigação revela que a Worldcoin focou a sua expansão em países onde a promessa de dinheiro fácil através de criptomoedas tinha maior apelo. No entanto, a execução operacional nestes locais revelou-se problemática.
Na Argentina, a empresa chegou a organizar autocarros para transportar pessoas de zonas distantes apenas para realizarem a digitalização da íris em troca dos tokens. No México, a pressão sobre os operadores locais foi intensa. Luis Ruben De Valadéz, antigo chefe de operações no país, revelou que teve de pedir emprestado cerca de 4.700 euros a familiares para conseguir manter a operação de sete locais, uma vez que os operadores tinham de cobrir a maioria dos custos iniciais.
Este modelo baseado em comissões criou uma economia paralela imediata: junto aos Orbs, surgiram casas de câmbio improvisadas onde os utilizadores trocavam os seus tokens por dinheiro vivo no momento em que os recebiam, desvalorizando a premissa de manter a moeda digital a longo prazo.
Um modelo de negócio por provar
A grande questão que paira sobre a Worldcoin é a sua viabilidade financeira. O CEO Alex Blania prometeu que a empresa nunca venderá dados dos utilizadores. Assim, as receitas dependem de taxas de verificação cobradas a outras aplicações que usem o "World ID", venda/aluguer de Orbs e taxas na sua própria blockchain.
Analistas e antigos colaboradores mostram-se céticos. "Tenho dificuldade em ver isto como um negócio", comentou Martha Bennett, analista da Forrester, apontando que o único incentivo atual para os operadores é ganhar comissões por volume, e para os utilizadores é receber o dinheiro da inscrição.
Com o objetivo de atingir os 100 milhões de utilizadores no próximo ano, a Worldcoin enfrenta o desafio clássico de muitas startups tecnológicas: possui capital abundante e uma visão de ficção científica, mas luta para encontrar uma utilidade prática imediata que justifique a sua existência para além da especulação e dos incentivos financeiros.










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